Intolerância Religiosa no Brasil

Maria Angélica Martins
6 min readOct 28, 2021

Por Rayane Lins| 25 de out. 2021

Instituto Cultural Caboclo Gira Mundo e Pena Azul, em Indaiatuba — SP. Foto por: Rayane Lins

Compartilho a entrevista que concedi à Rayane Lins neste mês de outubro. A entrevista compõe a reportagem “Religiões de matrizes africanas são as que mais sofrem intolerância no país”, publicada originalmente no Em Pauta: Jornalismo Independente.

Rayane| Por que você acha que as religiões de origem africanas são as que mais sofrem intolerância?

Maria Angélica| Não podemos falar do Brasil sem falarmos das religiões de origem africana, pois essas constituem nossa história e identidade. A matriz cultural e religiosa brasileira é marcada historicamente pela interação das religiões indígenas, africanas e do catolicismo ibérico. Mas que, pelo nosso processo de colonização, marcado por confrontos e violências, privilegiou-se o cristianismo (através do catolicismo ibérico) em detrimento das religiões indígenas e africanas, marginalizando-as até os dias atuais. É importante enfatizarmos que o nosso passado de escrividão é um fator preponderante para a discriminação e intolerância com as religiões de origem africana. Somado a isso, nos últimos anos, vimos crescer movimentos neopentecostais que propagaram mitos e preconceitos sobre a umbanda e o candomblé, contribuindo para o aumento das perseguições e das expressões de ódio contra essas religiões.

Rayane| A respeito dessa visão distorcida que as pessoas têm, o que podemos fazer para melhorar, além das pessoas tomarem conhecimento?

Maria Angélica| Primeiro, falar de religião não deve ser um problema. Existem extremos de dois lados: dos religiosos e dos não religiosos. Existem grupos religiosos que reivindicam que o Estado privilegie suas crenças nas decisões públicas. Por outro lado, existem grupos não religiosos que defendem que assuntos de religião não devem ser discutidos no espaço público, visto que o Estado é laico. Entretanto, essa é uma compreensão equivocada da laicidade.O conceito de Estado laico, em linhas gerais, significa que o Estado não adota uma confissão religiosa e não discrimina nenhuma religião. O que fere o princípio laico é quando uma religião é imposta e não há entendimento da pluralidade étnica, cultural e religiosa do nosso país. Uma religião de Estado não deve existir, mas no espaço público deve haver oportunidades para que as religiões se manifestem e, principalmente, oportunidades nas quais elas possam falar por si mesmas.

Em segundo lugar, uma vez que falar de religião não é mais um problema, o ensino religioso é outra maneira de superar as intolerâncias e discriminações religiosas. Mas não um ensino confessional e proselitista. O ensino religioso, como previsto na BNCC (Base Nacional Comum Curricular), deve fundamentar-se nos Direitos Humanos, promover o diálogo e a alteridade, para valorizar as diferentes identidades e promover a paz. Assim, o ensino religioso é importante para a formação do ser humano, e deve ser conduzido a partir de um estudo científico sobre as religiões. Nesse sentido, o profissional que tem condições de lecionar essa disciplina é o cientista da religião.

Rayane| Qual é a ligação da umbanda com a Sociologia?

Maria Angélica|Dentro da Sociologia, existe uma vertente que é a Sociologia da Religião. Inclusive, Max Weber, considerado um dos “pais” da sociologia, estudou o protestantismo, especificamente o calvinismo. Roger Bastide, outro importante sociólogo, estudou as religiões afro-brasileiras durante muito tempo. Assim, existe um campo de estudos bastante consolidado sobre a religião do ponto de vista sociológico. Mais recentemente, esses estudos têm se ampliado no campo das Ciências da Religião, privilegiando o reconhecimento do pluralismo religioso da nossa cultura, pois quanto mais discutimos e valorizamos a pluralidade brasileira, tendemos a romper com os preconceitos, com as violências e as injustiças sociais.

Rayane|A intolerância está ligada às classes sociais?

Maria Angélica|De certo modo, sim. Quando falamos de comunidades, por exemplo, no Rio ou em outras capitais, existe uma presença muito grande das igrejas neopentecostais, muito maior do que das igrejas tradicionais. Seus líderes — não digo todos, pois não podemos generalizar — acabam por propagar preconceitos que incitam a intolerância, sim. Mas, isso não quer dizer que a intolerância religiosa não esteja presente em outras classes sociais também, pois nem sempre uma pessoa que tem capital econômico, tem capital cultural; uma formação, um conhecimento que a possibilita ser mais consciente. Especialmente no Brasil, pela nossa formação histórica e pela desvalorização da educação.

Rayane|Quais são as principais características da intolerância religiosa?

Maria Angélica|Do meu ponto de vista, uma das características é não saber ouvir. A atitude de quem pratica intolerância religiosa é de não saber ouvir, discutir ou acolher qualquer diferença em matéria de religião. Essa pessoa quer impor sua visão de mundo e persuadir o outro a mudar de ideia. Isso configura uma falta de respeito e uma violência que, nesse primeiro momento, é simbólica, mas que pode se tornar física. Um exemplo: imaginemos duas pessoas, uma espírita e uma católica ou evangélica. A primeira acredita em reencarnação, a segunda não. E por isso condena a primeira; diz que ela está “perdida” e irá para o inferno. Essa é uma atitude de superioridade e intolerância.

Rayane|A intolerância cresceu depois das eleições de 2018, por quê?

Maria Angélica|O Presidente Jair Bolsonaro se elegeu com propostas que privilegiam os costumes e os valores cristãos (católicos e evangélicos das mais diversas denominações). Antes de 2018 já haviam discussões muito acaloradas em torno, por exemplo, do projeto de lei do pastor Marco Feliciano contra o suposto kit gay. Bolsonaro “subiu”, então, na “crista da onda” e encontrou um eleitorado sedento por uma ideia de “ordem moral”. Esse eleitorado pode não ser formado por pessoas que frequentam uma instituição religiosa, mas que têm uma referência moral muito forte, e essa referência se pauta na religião. Por isso a importância de pesquisarmos sobre religião; as pessoas não precisam, necessariamente, de uma religião ou uma crença, para terem valores religiosos e imprimirem tais valores na cultura, na sociedade e na política. Assim, Bolsonaro adotou uma agenda moral e religiosa, e os grupos cristãos — no sentido estrito e amplo da palavra — se perceberam representados, sentindo-se mais fortes na esfera pública. Enquanto que os grupos religiosos de matrizes africanas são colocados à margem novamente quando se trata de representatividade. Desse modo, pessoas cristãs, ou ao menos com valores cristãos, uma vez que veem seu próprio líder tendo atitudes negativas, elas também se sentem no direito de reproduzi-las, de não respeitar e de negar as diferenças, de praticar violência. Isso contribui para o crescimento da intolerância religiosa nesses anos de mandato do Presidente Jair Bolsonaro.

Rayane|Além das religiões de matrizes africanas, quais outras sofrem intolerância religiosa?

Maria Angélica|As denominações cristãs no Brasil estão sempre representadas, embora seja possível falar dos conflitos que ocorrem entre católicos e evangélicos ou dentro dos próprios grupos evangélicos pela sua heterogeneidade. Ou ainda entre não religiosos e religiosos cristãos de maneira geral. Mas acredito que não podemos falar da intolerância religiosa nesses grupos com a mesma intensidade que nos grupos religiosos de matrizes africanas, especialmente pelo nosso processo histórico. Mas para falar de outro grupo que sofre intolerância, podemos mencionar os espíritas, pois embora se reconheçam dentro da matriz cristã, não são aceitos por outros grupos cristãos. Nesse sentido, o espiritismo fica marginalizado e é negado a esse grupo o direito de falar por si mesmo.

Rayne|Se presenciarmos situações de intolerância religiosa, onde podemos denunciar? Tem um lugar específico?

Maria Angélica|É a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos que começamos a falar da intolerância religiosa como falamos hoje. Quando não se tem liberdade de culto ou outra expressão religiosa, um direito humano está sendo violado. Depois, e a partir da própria DUDH, nossa Constituição nos garante o direito de expressarmos nossa fé. Assim, quando esse direito é violado, nós precisamos comunicar às autoridades. Essa comunicação pode ocorrer em qualquer unidade policial. O governo de São Paulo criou a Delegacia da Diversidade para investigar crimes motivados por diversidade e intolerância sexual, étnico-raciais e religiosas. As vítimas podem comparecer presencialmente ou fazer o registro pela internet.

A intolerância religiosa no Brasil é um problema grave, daí que se segue a importância de termos uma delegacia para esses casos. Do ponto vista jurídico, nosso país é livre, mas no cotidiano as situações de discriminação fogem dos instrumentos jurídicos por serem um problema cultural. A transformação dessa cultura de violência só é possível pela consciência e ação. Se recorrermos rapidamente à pedagogia do Paulo Freire, ele diz que o oprimido precisa tomar consciência de que é oprimido e o opressor de que é opressor, mas somente a consciência não é suficiente, o próximo passo é a ação. Em geral, os preconceitos são tão enraizados, que eles acabam sendo inconscientes. Portanto, somente uma educação libertadora é capaz de transformar a realidade.

Para quem cresce num universo religioso fechado é difícil olhar para fora e reconhecer que há outros modos de vida tão válidos e legítimos quanto o seu. É preciso entender que o respeito a outros modos de vida e crenças, não coloca em xeque seus próprios valores, não o coloca em “pecado” ou em vias de perder a salvação. Esse é um trabalho muito importante, que precisa ser feito, e deve começar dentro das próprias instituições religiosas.

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Maria Angélica Martins

Socióloga e cientista da religião (UFJF/University of Copenhagen). Pesquiso, escrevo, ensino