“Se eu quiser falar com Deus”

Maria Angélica Martins
5 min readApr 4, 2022

Crônica publicada originalmente na Revista Casa D’Italia, Juiz de Fora, Ano 3, n. 21, 2022.

©Laura Coury

Numa sociedade ativa, sociedade do desempenho — dirá o filósofo Byung-Chul Han no livro Sociedade do cansaço — , o ser humano pode ser tudo, menos passivo. A lógica “quem não produz não conta” é reforçada porque todas as coisas dizem respeito ao trabalho; nossa identidade está atrelada ao que fazemos, o que fazemos define as experiências que temos, os bens e serviços que acessamos, os produtos que consumimos, e eles, por sua vez, dizem ao mundo quem somos. Não há tempo para contemplar e ser. Aproximamo-nos, no entanto, do Natal, data em que muitos gostariam que fosse mais que um dia de compras e presentes — a quem ainda pudesse tê-los. Até aqui caminhamos, e até corremos, esperando encontrar um pouco daquilo que parecia perder-se dia a dia nesses dois anos pandêmicos; e perdeu-se, rompeu-se, trouxe nó na garganta e rachaduras no coração. “E agora, José?” — perguntamos. Como chegaremos na noite de Natal? Aproveitemos para falar com Deus!

Rubem Alves, ao falar da experiência do esquecimento de Deus como expressão de confiança, recorre à metáfora da criança que, quando empina a pipa, esquece que tem corpo: “Por que invocar o corpo se ele está ali, tão fiel, tão cheio de prazer?” Mas, se estiver ferido, “cada gemido, uma queixa: Meu corpo, oh! Meu corpo…”[1]; assim também o sofrimento nos faz romper o silêncio da confiança e invocar a Deus. Lembro-me que, quando menina, as pessoas ao meu redor nem sequer ouviam a minha voz, por alguma razão não conseguia dizer-lhes o que eu pensava ou sentia. Assim, escrevia-lhes. Amava minha irmã com uma dor descomunal de partida, e todas as vezes que tinha de retornar à minha casa, deixava-lhe cartas expressando todo amor e gratidão que sentia. Na semana seguinte, de volta à sua casa, sentia-me como terra partida; alegrava-me por estar junto a ela e sentia-me angustiada e preocupada com meu irmão caçula que havia ficado em casa. Abria, então, meu diário e pedia a Deus com toda força e inocência de criança que o protegesse. Nas palavras encontrava ânimo, e por muitos anos tem sido assim. Mas é na poesia que tenho aprendido a falar com Deus. E aqui evoco o poeta do chão, Manoel de Barros:

Fui criado no mato e aprendi a gostar das
coisinhas do chão —
Antes das coisas celestiais
Pessoas pertencidas de abandono me comovem:
tanto quando as soberbas coisas ínfimas [2]

Manoel de Barros fala do verdadeiro valor da vida; que está nas coisas simples e pequenas. Está na xícara de café tomada numa manhã de segunda-feira. Está nos pés descalços sobre a terra. Está no abraço recebido enquanto vagueia pelo corredor de um hospital. Está na cumplicidade de uma tarde de sábado, com conversas soltas entre o almoço e o jantar. Está no canto dos pássaros ou das cigarras que rompem o silêncio da casa. Está no menino que, pensando na família, pede um pedaço de carne para celebrar o Natal. É nesse sentido que também aprendemos com outro poeta, Gilberto Gil (“Se eu quiser falar com Deus”):

Se eu quiser falar com Deus/ Tenho que ficar a sós/ Tenho que apagar a luz/ Tenho que calar a voz/ Tenho que encontrar a paz/ Tenho que folgar os nós/ Dos sapatos, da gravata/ Dos desejos, dos receios/ Tenho que esquecer a data/ Tenho que perder a conta/ Tenho que ter mãos vazias/ Ter a alma e o corpo nus

Com destreza e sabedoria, Gilberto Gil nos ensina que, para falar com Deus, é preciso deixar a multidão e, na contramão do nosso tempo, é preciso olhar para o chão de Manoel de Barros. Somente no despojamento daquilo que entorpece, enclausura, é que falamos com Deus e tornamo-nos nós mesmos. É preciso ter humildade.

Se eu quiser falar com Deus/ Tenho que aceitar a dor/ Tenho que comer o pão/ Que o diabo amassou/ Tenho que virar um cão/ Tenho que lamber o chão/ Dos palácios, dos castelos/ Suntuosos do meusonho/ Tenho que me ver tristonho/ Tenho que me achar medonho/ E apesar de um mal tamanho/ Alegrar meu coração

Em outras palavras, podemos desprender da poesia de Gil que a oração é o alento do oprimido. Não se trata de romancear o sofrimento, de aceitá-lo passivamente. Trata-se, e tão somente, de constatar que ele existe e revela que “O nome de Deus é o lugar dos nossos desejos, ainda que não os saibamos dizer”[3]. Rubem Alves, em sua belíssima interpretação do Pai Nosso, afirma sobre o nome de Deus que: “Os que moram em desertos dizem que o teu nome é Fonte-de-Águas frescas… Os órfãos dizem que tem rosto de uma Mãe, e os pobres te invocam com Pão e Esperança”[4]. Quando se invoca a Deus, o sofrimento é, na verdade, confrontado, e a alegria brota em terra seca porque, para aquele que tem fé, se é ouvido.

E se eu quiser falar com Deus/ Tenho que me aventurar/ Eu tenho que subir aos céus/ Sem cordas prá segurar/ Tenho que dizer adeus/ Dar as costas, caminhar/ Decidido, pela estrada/ Que ao findar vai dar em nada/ Nada, nada, nada, nada/ Nada, nada, nada, nada/ Nada, nada, nada, nada/ Do que eu pensava encontrar!

Na última estrofe, Gil destaca o papel da fé. Em termos tillichianos[5] podemos dizer que a fé é a autoafirmação a despeito das contingências, do sofrimento e da morte que nos ameaçam em cada momento da existência. É estar apoderado ou apoderada pela coragem de ser, coragem de viver o presente e de apostar no futuro com esperança, não de encontrar o que se pensava, mas o melhor do que se podia prever. Falemos, portanto, com Deus, das dores que habitam em nós, mas sem esquecermos — como diria Manoel de Barros — de sermos árvores, isto é, de sermos sombra e amor para aqueles que precisam, pois o Natal fala do menino Jesus que nasceu em simplicidade numa manjedoura, e teve fome, e teve sede, e foi acolhido em amor no corpo de uma mulher.

[1] ALVES,1987, p. 53.

[2] Poema: Aprendo com as abelhas

[3] ALMEIDA, 2020, p. 87.

[4] ALVES, 1987, p. 44.

[5] Paul Tillich (1886–1965) foi um importante teólogo protestante do século XX. Entre outras obras, ele trabalha o conceito de fé também na obra A coragem de ser, publicada originalmente em 1952.

Referências Bibliográficas:

ALVES, Rubem. Pai Nosso: Meditações. Rio de Janeiro/São Paulo: CEDI/Paulinas, 1987, p. 53.

ALMEIDA, Edson Fernando de. O Pai nosso sob o olhar de Rubem Alves. In CAMPOS, Breno Martins; MARIANI, Ceci C. Baptista; RIBEIRO, Claudio de Oliveira (Org.). Rubem Alves e as contas de vidro. São Paulo: edições Loyola, 2020, p. 87.

BARROS, MANOEL. Retrato do Artista Quando Coisa. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1998.

HAN, BYUNG-CHUL. Sociedade do cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
TILLICH, PAUL. A coragem de ser. 6a edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

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Maria Angélica Martins

Socióloga e cientista da religião (UFJF/University of Copenhagen). Pesquiso, escrevo, ensino